🇵🇹 Retrospectiva (emigração)
Recentemente ouvi o primeiro episódio do Podcast Bit aites onde os meus antigos professores do ISEL Miguel Gamboa e Paulo Pereira entrevistaram os ex-alunos Alexandre Rodrigues e Diogo Silva, e onde falaram da criação de valor, do mercado IT em Portugal, até ao valor acrescentado do mestrado no currÃculo.
Este episódio despertou o meu interesse por ter sido promovido como uma conversa para se discutir a experiência do Alexandre na Suécia e quais as suas razões para emigrar. Porém, talvez por ter sido um episódio experimental, fiquei com a sensação de que o tema da emigração poderia ter sido explorado em mais detalhe, especialmente tendo em conta que muito do público do canal são estudantes, e a emigração tende a ser um dos tópicos que mais curiosidade desperta. Assim, tendo acabado de celebrar o 3ᵒ aniversário como Android developer em Londres, achei interessante fazer uma retrospectiva da minha experiência e partilhá-la em público.
Sou ex-aluno do ISEL e emigrei para Londres depois de concluir o mestrado (14 valores) já com sensÃvelmente 3 anos de experiência na indústria em Portugal. Emigrei porque senti que queria colocar-me num mercado onde existia mais competitividade e as expectativas fossem mais elevadas. Com uma quantidade de “talento” superior a Portugal, Londres é a casa de muitas empresas de produto e onde o dinheiro, e por consequência risco e responsabilidade, abunda. Achava também que se um dia quisesse viver em Portugal com salários do estrangeiro, teria de provar o meu valor no exterior e ao mesmo tempo criar uma lista de contactos internacionais para conseguir ter acesso a essas oportunidades profissionais a partir de Portugal.
Com 27 anos, 500 euros na conta bancária e sem dependentes, decidi que em Março de 2018 era o momento certo para fazer a mudança. Em retroespectiva, fico agradado por ter atingido os objectivos profissionais que ambicionava e a que me tinha proposto quando frequentava o ISEL, porém, hoje percebo que esta mudança teve muitas mais consequências do que eu tinha esperado.
Pessoalmente
Melhor organização, mais oportunidades, recursos e inovação são as primeiras diferenças quando comparo Londres a Portugal. No entanto, estes aspectos são contrabalançados com a falta de acesso à familia e um custo de vida superior. É uma escolha que terão de fazer mas é comum ver casos de profissionais emigrarem durante 5 anos e voltarem a Portugal para constituir famÃlia e continuar a trabalhar a partir de Portugal.
Eu tive a sorte de ter por perto alguns ex-colegas do ISEL, e inclusive viver com um deles durante os primeiros dois anos, enquanto ao mesmo tempo criava laços pessoais e profissionais no local de trabalho. No entanto, conheço quem tenha vivido sozinho durante sensivelmente o mesmo tempo e que tenha agora acabado de regressar a Portugal alegando solidão e saudades da famÃlia, especialmente durante os confinamentos.
Cuidados de saúde
Visitei as urgências uma vez, fui a várias consultas de rotina, fiz fisioterapia num hospital estatal, tomei vacinas recomendadas para as minhas viagens intercontinentais e não paguei absolutamente nada. Visitei um dentista privado e paguei um valor ligeiramente superior a um tratamento equivalente em Portugal.
Os meus conhecidos da área da saúde que vivem no Reino Unido dizem que em Portugal os funcionários são melhores e mais competentes, mas como utente até agora, sempre fui bem atendido e todos os meus problemas foram resolvidos.
Financeiramente
Salário
A margem de progressão financeira é incomparável a Portugal. Em termos lÃquidos em Londres, estamos a falar de duas a três vezes mais tanto para juniores como seniores. Dependendo do nÃvel de experiência, a escala vai de 35.000 a 75.000 na maioria dos casos, existindo salários até os 90.000 em casos excepcionais (mesmo em seniores) e até +130.000 (staff engineer numa rede social) em empresas de produto que pretendem contratar os melhores do mercado. Tudo isto, fora os restantes benefÃcios de um contracto de trabalho por conta de outrém.
Já quem trabalha por conta própria (contractor) consegue auferir mais dinheiro (400-600£/dia brutos) mas tem algumas contrapartidas fiscais associadas, como também não tem acesso aos restantes benefÃcios (ex: dias de férias pagas) de um trabalhador por conta de outrém. É importante também frisar que um contractor tende a ser contratado por perÃodos de tempo fixos, de 3 até 9 meses (renováveis), e nem todas as empresas procuram os seus serviços.
A tÃtulo de exemplo, o meu primeiro contracto em Londres foi de sénior numa pequena agência a auferir 55k.
| Bruto anual | LÃquido Mensal |
| -------- | --------- |
| 35.000£ | 2,288.52£ |
| 50.000£ | 3,138.52£ |
| 75.000£ | 4,349.10£ |
| 100.000£ | 5,557.43£ |
Fonte: The salary calculator
Por fim, mais dinheiro (em teoria) significa mais possibilidades de viajar ou comprar o gadget que sempre quiseram. Deixarão de precisar de gastar um salário completo para fazer uma viagem a Cabo Verde ou a comprarem um iPhone de última geração.
Fun Fact, no ano de 2019 viajei para a Costa Rica mais um amigo meu durante duas semanas e sem planeamento algum, numa viagem comprada no mês anterior de forma impulsiva. Foi durante estas súbitas férias que conheci a minha esposa e com quem hoje vivo.
Pensão
Ao contrário de Portugal, no Reino Unido, e pelo menos da República da Irlanda, todos os trabalhadores por conta de outrém subscrevem automaticamente uma pensão privada. Mensalmente, esta pensão recebe contribuições mensais de 2-5% do salário bruto acrescido de uma contribuição equivalente (ou até superior) pela entidade patronal. Por exemplo, se auferirem 5000£ brutos mensalmente, a 250£ desses 5000£ serão acrescidos mais 250£ pagos pela empresa onde trabalham.
Esta pensão é gerida por uma entidade privada e investida em planos com obrigações e acções, o que significa que na idade da reforma, o seu valor é consideravelmente superior a se fossem feitas apenas as contribuições numerárias indicadas anteriormente. Chegada a idade da reforma, poderão tirar partido desta pensão privada, e o estado complementa ainda mais com uma pensão pública cujo valor neste momento ronda os 600£ mensais.
Sistema fiscal
A carga fiscal não tem impacto apenas no salário mas também na forma como incentiva o cidadão a investir. Com mecanismos financeiros como os ISA é possÃvel investir até 20.000£ ao ano através de uma plataforma (ex: Vanguard, Trading 212) sem pagar qualquer cêntimo pelos ganhos sobre esses investimentos.
Em Portugal, 28% é absorvido pelo estado em qualquer ganho sobre capitais ou dividendos. A tÃtulo de exemplo, se comprarem uma acção da Tesla a 1000$ e a venderem por 1001$, terão um ganho de 1$ mas 28 cêntimos irão para o estado. No Reino Unido, desde que o vosso investimento esteja dentro de um ISA, caso a acção valorize até os 50000$ e a decidam vender, todo o lucro da venda será vosso. Mesmo para quem investe fora dos ISA, as condições continuam a ser melhores do que em Portugal.
Com salários mais altos do que Portugal, um sistema de pensões que incentiva a poupança, um conjunto de mecanismos que alicia o investimento privado, acrescido da pensão privada e estatal acumulada durante decadas, faz agora sentido como tantos casais britânicos decidem viver os seus últimos dias em Portugal, onde o custo de vida é inferior e na maioria das vezes são ainda recebidos com vantagens fiscais que os Portugueses nao tem acesso.
Contudo, é importante frisar que o meu interesse por investimentos só surgiu por ter estado rodeado de pessoas no meu local de trabalho que falavam sobre o assunto como se algo de natural se tratasse. Em contraste com os meus cÃrculos familiares e profissionais em Portugal, não me recordo de nenhuma instância em que um indivÃduo tenha falado sobre o que investir e como. Talvez por Portugal não ser um paÃs que favoreça o investimento privado, e/ou também porque a grande maioria da população não recebe o suficiente para investir quando subtraÃdas todas as despesas mensais.
Stocks
Em Portugal, a maioria dos profissionais é contractado por consultoras que os reposiciona noutras empresas, ou por software houses (agências) que desenvolvem softwares para terceiros. Nos últimos anos, potenciado pelo fenómeno Web Summit, cada vez mais empresas tecnológicas de produto (ex: Farfetch, Feedzai, Talkdesk) têm vindo a ser criadas e a contratar profissionais directamente para os seus quadros.
Contudo, mesmo dentro deste nicho de empresas em Portugal, poucas são as que oferecem um plano de equidade atraente como parte dos benefÃcios de um contracto de trabalho. Em Londres, estes planos são comuns practicamente em todas as empresas de produto, qualquer que seja a sua dimensão, e alguns deles são bastante atractivos.
Existem vários mecanismos de equidade mas para simplificar, vamos apenas considerar os dois mais comuns, RSU e stock options. Em ambos os casos, o profissional “recebe” 25% ao fim do primeiro ano de emprego, e o restante é “atribuÃdo” mês a mês em quantidades proporcionais até um total de 3 ou 4 anos, mediante o plano acordado.
Restricted stock unit
Empresas que já estejam cotadas no mercado de valores (ex: Twitter, Facebook, Amazon), oferecem planos de equidade, para além do salário base, de um número de stocks equivalente a várias dezenas de milhares até centenas de milhares de libras. Por exemplo, um engenheiro pode receber um contracto base de 100.000£, 5.000£ de assinatura e mais 50.000£ em acções num prazo de 4 anos.
Stock options
Para as pequenas e médias empresas que ainda não se encontram no mercado de valores, normalmente cada plano de equidade oferece um número de opções, cujo valor pode aumentar ou diminuir consoante a evolução da empresa. No entanto, o valor real da stock option é (tÃpicamente) zero. O seu valor apenas se materializa caso a empresa seja vendida a terceiros ou entre no mercado de valores.
Neste caso, imaginando que um profissional possui 10.000 stock options com opção de compra a 10$. Se a empresa completar o processo de IPO (entrar no mercado de valores) com um valor de 50$ por acção, se ignorarmos todas as implicações fiscais, significa que agora o profissional detém de um pacote de 400.000$. Mais concretamente, 10.000 x (50$ - 10$) em acções de uma empresa em que trabalhou 3 ou 4 anos.
Esta é uma das estratégias de muitos profissionais em Sillicon Valley nos Estados Unidos, que optam por trabalhar em várias empresas pré-IPO ao longo de um perÃodo de uma ou duas décadas, coleccionando stocks e atingindo a liberdade financeira muito antes dos 65 anos de idade.
Contudo, a possibilidade de uma empresa iniciar o processo de IPO ou até ser vendida a um preço elevado, é muito reduzida. Como futuros investidores, todos nós temos a obrigação de fazer uma análise da viabilidade e perspectivas da empresa para o futuro.
Profissionalmente
Densidade de talento
Uma das principais razões que me levou a mudar para Londres foi a quantidade de profissionais com qualidade acima da média. No meu último emprego (BabylonHealth) estive integrado numa equipa de mais de 40 android developers de nÃvel muito alto, com grandes talentos de toda a parte do mundo. Estes trazem a experiência nao só dos seus paÃses, como de grandes empresas (ex: Soundcloud, IBM) europeias e americanas onde trabalharam anteriormente.
Mais interessante ainda, é verificar as diferenças de conhecimento dentro do mesmo domÃnio, com engenheiros numa equipa de android mais inclinados para interfaces gráficas, outros em arquitectura, outros em ferramentas e infraestrutura, até usabilidade e acessibilidade. Esta experiência foi tão marcante que me provocou uma crise profissional e me obrigou a reconsiderar onde gostaria de me especializar dentro (ou até mesmo fora) de Android.
Por outro lado, esta densidade acaba também por levar à criação de muitas comunidades tecnológicas. Já imaginaram, no fim de um dia de trabalho deslocarem-se ao escritório do Facebook, Skyscanner, Google, para assistirem a palestras gratuitas e conversarem com os seus engenheiros? Em Londres este cenário é muito comum.
A densidade é tao crÃtica que é essencial para a proliferação de novas empresas, o que leva a mais oferta e mais competição. Esta competição, não só pelos profissionais mas entre produtos em si, força as empresas muitas vezes a adoptarem tecnologias mais “exóticas” (ex: linguagens funcionais) na indústria portuguesa, ou até a tecnologias mais recentes (cutting edge) e inovadoras que tanto atraiem os engenheiros que vivem em Portugal.
Qualidade dos chefes
O Reino Unido não é o paraÃso na terra mas a sensação que tenho, e de ouvir muitos outros colegas que também emigraram para outros paÃses, é que se sentem mais valorizados e respeitados pelas suas chefias do que as chefias que tiveram em Portugal. Não querendo generalizar, este ponto é geralmente consensual quando observamos as caixas de comentários de portais de notÃcias portugueses com artigos relacionados com a empregabilidade em Portugal, ou mais ainda, nas comunidades portuguesas do reddit. Contudo, convém salva-guardar que só costuma escrever nas redes sociais ou nos portais, quem está descontente com a sua situação profissional e raramente se vê o contrário.
Empreendedorismo
Ainda não chegou o momento de criar a minha empresa mas parece-me que numa cidade com mais talento, mais recursos e fiscalmente favorável, Londres reúne das melhores condições dentro da Europa para se abrir uma empresa. A existência de grandes investidores (Venture Capitalists) com mais e maiores fundos do que em Portugal, facilita o acesso a um maior nÃvel de investimento que, por consequência, permite empregar os excelentes profissionais que existem no mercado, mesmo aqueles que saÃram de Portugal como tantos que conhecemos.
Conclusão
A minha vinda para Londres deu-me acesso a condições pessoais e a uma experiência profissional que em Portugal seria practicamente impossÃvel de atingir. Obrigou-me a crescer porque me coloquei em empregos com colegas muito melhores e mais conhecedores do que eu. E estas decisões, hoje fazem-me acreditar que quando as escolhas do paÃs, das empresas, e até dos colegas, são bem aproveitadas a todos os nÃveis (financeiro, pessoal e profissional), emigrar é muito mais do que “ir para fora ganhar bem”.
Contudo, a distância da familia é algo que nem todos conseguem suportar. Em alguns casos, até a falta de sol a que estão acostumados em Portugal é o suficiente para colocarem a mudança em causa. Mas é uma decisão que terão de tomar tendo em conta as vossas circunstâncias e as vossas ambições.
Tudo dependerá de vocês.
PS: No episódio falaram também sobre a utilidade de um mestrado no mercado. Em 2019, escrevi um artigo sobre o assunto.